O leite de vaca é prejudicial à saúde?

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Mito!

A saúde é uma das áreas em que, provavelmente, os mitos se encontram mais enraizados. Dentro desta, a nutrição é a esfera em que as invenções e os erros mais se acumulam. 

Entre os principais componentes da dieta, o leite tem sido alvo de uma série de comentários negativos, que surpreendem até pela violência. Aumento do risco de câncer, de diabetes, de fraturas, de esclerose múltipla e de problemas cardiovasculares são apenas exemplos dos malefícios atribuídos a ele. Mas existe alguma evidência científica válida e com impacto clínico que confirme (ou não) essas convicções?

Estudo experimental x Estudo observacional

Em primeiro lugar, é importante reconhecer que, para poder estabelecer um nexo de causalidade entre um fator de risco (neste caso, a ingestão de leite) e um problema de saúde (seja uma doença, um sintoma, um sinal, etc.), temos que possuir um estudo experimental, no qual selecionamos ao acaso um conjunto de pessoas, as dividimos aleatoriamente em dois grupos (um consome leite regularmente e o outro, não) e analisamos os indicadores clínicos que achamos importantes (aumento do câncer, de eventos cardiovasculares, etc.). Estudos que apenas comparam pessoas que bebem leite com as que não o bebem na sua vida normal (os estudos observacionais) são válidos, mas não permitem concluir com a mesma certeza a relação eventualmente encontrada entre o leite e potenciais doenças. Isso porque pode haver outras causas para essas doenças que nada tenham a ver com a ingestão de leite. 

Relação com câncer

Um dos mitos levantados contra o leite é o da sua potencial relação com o câncer. Existem provas desta relação ser verdadeira? Numa revisão sistemática da literatura recentemente publicada (Nutrition Journal 206;15:91), foram analisados 11 estudos, incluindo um total de 778.929 doentes procurando determinar se havia alguma relação entre o consumo de produtos lácteos e a mortalidade por causas oncológicas. As conclusões desses investigadores foi que, seja com a ingestão de leite de vaca, de iogurte, de queijo ou de manteiga, não foi verificado qualquer aumento da mortalidade de câncer em ambos os sexos. Os resultados desses estudos permitem, portanto, afirmar que a ingestão de leite de vaca não influencia em nada o risco de mortalidade global por câncer.

Obesidade e risco cardiovascular

A segunda área da saúde em que o leite tem sido questionado é o da obesidade e risco cardiovascular. Aqui também não se confirmam essas crenças: numa revisão sistemática canadense incluindo um conjunto de 21 outras revisões – uma espécie de síntese de sínteses (Advances in Nutrition 2016;7:1026-40) -, não foi detectado qualquer aumento de risco cardiovascular, concluindo os autores que o consumo regular de vários tipos de laticínios é neutro ou mesmo favorável à saúde do coração. Curiosamente, uma revisão sistemática da Cochrane (considerada universalmente como a melhor prova científica disponível sobre benefícios e riscos de uma intervenção qualquer) indica uma melhoria marcada no risco cardiovascular com a ingestão da dieta mediterrânea que, como de conhecimento, é composta por um índice alto de gorduras monoinsaturadas versus saturadas, ingestão regular de vinho, ingestão elevada de legumes, gramíneas, cereais e frutas/vegetais, baixa de carne e significativa de peixe, e consumo moderado de leite e de produtos lácteos (Cochrane Database of Systematic Reviews 2013, Issue 8. Art. No.: CD009825).

Quanto à obesidade, os resultados da ingestão de laticínios são contraditórios tanto em adultos, quanto em crianças (Eur J Clin Nutr 2016;70:414-23).

Portanto, baseados nesses estudos selecionados pela sua alta qualidade metodológica, não parece ser justificado o receio da ingestão de leite e o risco dessas doenças. 

Finalmente, temos que reconhecer que a eliminação de componentes da dieta pode ter consequências negativas, já que podem fazer falta no desenvolvimento equilibrado dos jovens ou na manutenção de uma boa qualidade de vida nos adultos. 

ANTÓNIO VAZ CARNEIRO
Professor da Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa (FMUL) e diretor do Centro de Estudos de Medicina Baseada na Evidência da FMUL. É, ainda, diretor da Cochrane Portugal.

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