Por Flávia Fontes
Desde que me tornei mãe, há pouco mais de cinco anos, entrei em um universo que me era totalmente desconhecido, cheio de surpresas maravilhosas e outras nem tanto… Uma das situações pouco confortáveis pelas quais passei nessa nova vida ocorreu quando levei meu primeiro filho ao pediatra para sua consulta de 11 meses.
Ele mamou no peito até o sexto mês e, desde então, vinha sendo aleitado com uma fórmula recomendada até o primeiro ano de vida. Se antecipando ao fato de que no próximo mês ele completaria 1 ano, a pediatra entrou no assunto sobre qual leite meu filho deveria passar a tomar. Ela me explicou, detalhadamente, que, para evitar um possível quadro de alergia às proteínas do leite de vaca – uma situação, segundo ela, cada vez mais comum nos dias de hoje – ele deveria tomar um “leite especial, rico em ácidos graxos que ajudariam em seu desenvolvimento cerebral. E, rapidamente, sacou de uma linda lata, dizendo que aquele era o “leite” adequado para o meu filho, e que eu poderia levá-la como amostra grátis para ele experimentar. Que mãe não quer o melhor para o seu filho? E já que não discordávamos que ele receberia leite, saí do consultório feliz da vida com a minha latinha.
Chegando em casa, fui preparar a primeira mamadeira da transição, ou seja, contendo 50% da fórmula e 50% do novo “leite”, para que meu filho se adaptasse de forma suave à mudança em sua dieta. Ao abrir a lata do novo produto, fui arrebatada por um delicioso aroma de baunilha e meu faro de veterinária deu o alerta – isso não é leite! Quantas vezes fiz o teste do olfato para avaliar substitutos de leite para bezerras! Quanto mais cheiro de leite, melhor! E aí fiz o que deveria ter feito dentro do consultório da pediatra – olhei o rótulo do produto. E lá estava, em letras de tamanho até razoável, a descrição daquilo que propositalmente coloquei entre aspas (“leite”) em todo o texto acima. O produto não era leite, e sim um composto lácteo enriquecido com óleos e fibras vegetais. Minha surpresa se transformou em ira em uma fração de segundo e, só depois de algum tempo, consegui ser racional e enxergar a situação sob uma ótica mais ampla, que apresentarei neste texto.
Devo aqui abrir um parênteses para dizer que a pediatra do meu filho é uma profissional extremamente competente, que eu não acredito que receba nenhum tipo de benefício para fazer propaganda do que quer que seja, e a quem confio totalmente a saúde do meu filho. O leite foi o nosso primeiro e único ponto de conflito até então.
Passado o susto inicial, comecei a pesquisar as opções de leite que eu teria para oferecer ao meu filho e a minha primeira lembrança foi de uma marca bastante conhecida e confiável. Descobri que existia um tipo diferente para cada fase da vida da criança. Mas, mais esperta dessa vez, fui direto ao rótulo, e lá também estava a mesma descrição – composto lácteo com óleos vegetais e fibras. Liguei para uma amiga, também veterinária e hoje minha sócia, que tem uma filha da mesma idade do meu primogênito, e perguntei a ela que leite daria para sua menina a partir de agora. A resposta foi rápida, e era exatamente o produto que eu acabara de pesquisar. Quando disse a ela que aquele produto não era leite, senti em sua voz a mesma surpresa que eu vivenciara na própria pele alguns dias antes. Naquele momento, “minha ficha” começou a cair – se duas veterinárias, sendo que uma (no caso eu) trabalha especificamente com leite, “compraram gato por lebre”, imaginem as demais mulheres que não são da área…
Mas, enfim… em um primeiro momento achei que aquilo era problema e decisão de cada uma, e decidi tocar minha vida, continuando a adaptação do meu filho com “leite de verdade”. Passada uma semana, comecei a dar 100% de leite integral e, para minha mais completa alegria, ele não teve nenhum tipo de reação indesejável e, o melhor de tudo, amou e passou a consumir um volume ainda maior que o anterior. Sucesso total! Feliz da vida, resolvi compartilhar minha alegria em um grupo de 4.000 mães no Facebook – o Padecendo no Paraíso. Escrevi o seguinte post: “Orgulho de mãe veterinária – filhote completou 1 aninho na sexta e já está tomando 100% de leite integral. Adeus fórmulas e compostos lácteos! Aqui é LEITE!!!” Os comentários começaram a pipocar e, em menos de 1 hora, já eram mais de 100, a maioria com algum tipo de dúvida, quase todas sobre a nossa já velha conhecida confusão entre leite e composto lácteo. Nesse momento, senti que era da minha conta, sim. Que, como alguém que dedicou seus estudos e tira seu sustento do leite, era minha obrigação defendê-lo, com unhas e dentes se preciso fosse…
Me envolvi em várias discussões acaloradas no post e achei que era meu papel escrever um artigo, para esclarecer tantas dúvidas que as mães colocaram em seus comentários e, para enriquecer o material, resolvi fazer uma enquete, nesse mesmo grupo de 4.000 mulheres, com a seguinte pergunta: “Que leite vocês dão ou pretendem dar para seus filhos maiores de 1 ano de idade?” Em menos de 24 horas tive mais de 350 respostas. Quase 60% das mulheres forneciam compostos lácteos para seus filhos a partir de 1 ano de idade, e apenas pouco mais de 20% forneciam leite.
Resultado da enquete feita no Padecendo no Paraíso sobre aleitamento de crianças com mais de 1 ano
Falta de informação e desinformação
Antes de prosseguir, preciso abrir um novo parênteses. Não estou dizendo, em hipótese alguma, que compostos lácteos são alimentos ruins e, como não sou médica, obviamente e por razões éticas, jamais discutirei prescrições feitas por pediatras para crianças com diagnóstico de alergia ao leite de vaca, intolerância à lactose ou qualquer outro problema de saúde que restrinja o consumo de leite. Meu objetivo é mostrar que ainda existe muito desconhecimento entre as mães em relação ao leite e que isso pode gerar, em médio e longo prazo, sérios problemas de aceitação do produto por parte das gerações futuras. Em outras palavras, estou defendendo o leitinho das crianças.
Dentre as respostas recebidas no post, podemos dividir as mães em 3 grupos distintos:
1) Aquelas que apesar de não saberem que composto lácteo não é leite, não se importam quando descobrem, porque só fornecem o produto aos filhos por terem recebido orientação nesse sentido;
2) Aquelas que se auto-denominam “ativistas contra o leite”, que utilizam frases como “Aqui em casa o leite foi banido, baseado em estudos recentes, e os benefícios foram visíveis e imediatos. Leite é um alimento completo e perfeito, para bezerros”;
3) Aquelas que são maioria, que usam compostos lácteos e não sabem que não estão dando leite para seus filhos. Grande parte dessas mulheres fica indignada ao saber que foram “enganadas”. Ou seja, gostariam de estar dando leite integral para seus filhos;
A meu ver, o grupo 3, que representa a maioria das mães, é também aquele que deveria ser o foco de ações de esclarecimento, que podem ser organizadas pela cadeia produtiva do leite, mas que também podem partir de cada um de nós, que acredita que o leite é um alimento nobre e que seu consumo deve ser estimulado nas crianças.
Vale também lembrar que a maior parte das recomendações de utilização de compostos lácteos, ao invés de leite, vem dos pediatras, como ocorreu comigo. Por que esses profissionais agem assim? Outra classe que costuma desabonar totalmente o leite são os nutricionistas, mas o próprio Conselho Regional de Nutrição da 3a região, que abrange os Estados de São Paulo e Mato Grosso do Sul, publicou parecer explicitando que a recomendação para exclusão do leite da dieta só deve ser feita para pacientes com diagnóstico comprovado de intolerância à lactose ou alergia às proteínas do leite de vaca (APLV), e que esse diagnóstico é de competência exclusiva dos médicos. O parecer diz ainda que o profissional que descumprir esta diretriz estará infringindo o Código de Ética e, portanto, sujeito a processo disciplinar e às penalidades previstas em lei. Será que algo semelhante também poderia ser feito com os pediatras?
Um olhar no futuro…
O que eu pretendo com esse texto é chamar a atenção de todos para algo que ainda não foi dito aqui. Fiz questão de comprar e provar algumas marcas de compostos lácteos e elas têm um sabor delicioso (algumas em função da alta inclusão de açúcar), muito mais atrativo para uma criança (e até para os adultos) que o leite. Alguns desses produtos possuem versões para crianças de até 5 anos de idade. O que acontecerá com o consumo de leite dessas crianças, futuros adolescentes e adultos? A resposta é: quando deixarem de consumir as fórmulas, passarão a consumir outros produtos, que não o leite, pois seu paladar já estará adaptado a um padrão de alimento mais doce e saboroso. Ou seja, estamos criando uma geração futura que não se acostumou a tomar leite na fase da vida na qual os hábitos de consumo e paladar são formados.
O #bebamaisleite, movimento criado em 2016 para estimular o consumo de leite e derivados, tem como foco principal as mães. Em menos de dois anos o movimento já conseguiu atingir mais de 100.000 mães e formadores de opinião (blogueiras e digital influencers) com ações presenciais e on-line. Mas ainda há um longo caminho a ser percorrido e é necessário que cada um faça a sua parte, começando pela sua casa e passando pelos seus familiares, amigos e conhecidos. Quantas pessoas podemos influenciar positivamente? Ou vai preferir ficar de braços cruzados?
Flávia Fontes é médica veterinária, D.Sc. Nutrição Animal, editora-chefe da Revista Leite Integral e do Movimento #bebamaisleite e diretora científica da ABRALEITE